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Exposição “Será o Benedito?” de Fatima Farkas resgata a memória das lutas raciais no Brasil

Tão sinistro quanto a violência que marca as vidas e as mortes de 4,9 milhões de negros escravizados trazidos ao Brasil é o silêncio da história ante toda a herança racista e patriarcal que permanece até os dias de hoje”. - Mauro Trindade, curador 

 

“Vendo a imagem das folhas voando em volta da minha figura pictórica, penso que sou o sonho de meus ancestrais.   Sou uma mulher preta que realizou, estudou, que é remunerada e reconhecida pelo meu trabalho, me locomovo, tenho a liberdade de ir e vir com altivez. O estudo te dá isso.  Gerações após gerações de gente corajosa e resiliente me trouxeram até aqui”  - Luana W. Cotrin Negreiros, personagem retratada em três telas na exposição



O Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), oficializado recentemente Patrimônio Cultural da cidade do Rio de Janeiro, celebra seus 19 anos com uma exposição imperdível.  No dia 10 de maio (sexta-feira), a artista visual Fátima Farkas inaugura a exposição “Será o Benedito?”, com curadoria de Mauro Trindade. 


Com cerca de 35 telas impactantes, a mostra traz à tona personagens marcantes das lutas raciais, muitos dos quais foram esquecidos devido à herança racista e patriarcal. Farkas utiliza sua pintura expressiva para reconstruir a memória, utilizando-se de retratos fotográficos de negros. Um exemplo é Benedito Caravelas, também conhecido como Benedito Meia-Légua, líder de grupos quilombolas que libertavam escravos no Nordeste e no Espírito Santo. A artista se inspira em fotografias antigas, como a de Alberto Henschel, para dar vida a esses personagens históricos. 


Outros retratos notáveis incluem figuras como João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata, Luiz Gama, Nzinga, rainha de Ndongo e de Matamba, e o premiado arquiteto burquinês Diébédo Francis Kéré.  Farkas também denuncia o apagamento histórico ao substituir rostos por vegetação ou por um vazio branco, representando o sumiço de corpos e vidas. 


Para Mauro Trindade, curador da exposição, Fátima Farkas revela esse processo de apagamento e, numa ação estética e política, propõe uma reelaboração da memória através da apropriação de retratos fotográficos de negros que recria, com beleza e dignidade, grandes personagens do passado e do presente.


Esta exposição, que aborda temas tão relevantes como o esquecimento e a memória, oferece uma oportunidade única para se emocionar e refletir sobre essa parte crucial da história brasileira. O público é ainda recebido com uma fragrância no ar, evocativa de elementos como café, ouro, fumo e cana, que constituíam a rotina da maioria dos escravizados.


“Será o Benedito?” estará em cartaz no Instituto Pretos Novos até 20 julho de 2024.  Além de celebrizar os 19 anos do IPN, a mostra também marca os 250 anos do sítio do Cemitério dos Pretos Novos, um dos mais importantes vestígios da chegada dos africanos escravizados no Brasil, que funcionou entre 1774 e 1830.  


A artista 


Fatima Farkas tem sua origem profissional ligada ao design, migrando depois para as artes visuais. Seu trabalho tem forte ligação a questões brasileiras étnicas e culturais, especialmente do Recôncavo Bahiano. Com formação entre o Rio e São Paulo, frequentou a escola do Parque Lage e integra o grupo Contraponto, reunido no ateliê de Sérgio Fingerman.



Serviço

Exposição “Será o Benedito” 

Fátima Farkas

De 10 de maio a 20 julho de 2024

Curadoria: Mauro Trindade

Textos: Mauro Trindade, Henrique Samyn, Christopher Dunn

Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos

Rua Pedro Ernesto, 32-34 - Gamboa, Rio de Janeiro 

Horário de funcionamento: de terça a sexta das  10 às 16 horas

Aos sábados: 10 às 13horas


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"Lendária a aura que envolve esta figura: Benedito Caravelas, alcunhado “Meia-Légua” – que, no Espírito Santo oitocentista, várias vezes teria morrido, e outras tantas ressuscitado, sempre com o divino favorecimento do santo que lhe era homônimo (e que, supostamente, consigo levava em um embornal); até seu terrível desaparecimento, calcinado no tronco de uma árvore no qual buscara refúgio (de onde as palavras que ao quilombola concedi, em meu Levante: “Valei-me, são Benedito: / até que me queimem vivo, / meus irmãos libertarei.”)


Se a tradição constitui caminhos para processos de ressignificação da história, por intermédio de práticas e discursos, entre as suas valias para o imaginário negro está o preenchimento das lacunas e fraturas impostas pelo epistemicídio. Destarte, entre outras tantas figuras, Benedito Meia-Légua – bem como seus pares, entre os quais Viriato Canção-de-fogo e Constância de Angola – persiste como um ícone do passado possível; assim como a inventada origem para uma expressão que, historicamente deslocada, foi apropriada pelo ideário em torno da resistência negra, como expressão da perplexidade dos opressores perante as elaboradas estratégias do Meia-Légua: “Será o Benedito?”


E o que faz hoje Fatima Farkas, se não oferecer a sua contribuição para esse jogo de invenções e ressignificações? Dialogando com o imaginário contemporâneo, que fez de um retrato assinado por Alberto Henschel a face de Benedito Meia-Légua – imagem a partir da qual a própria artista concedeu ao quilombola uma nova efígie –, Fatima assumiu a tarefa de representar não apenas outros negros vultos, como também a sua ausência (evidenciando, por conseguinte, o próprio processo de apagamento). O gesto, portanto, se realiza como um movimento duplo, que simultaneamente gera novos modos de visibilidade que encerram, em si, a potência da denúncia.


Esta série de telas revela um trabalho profundamente autoral, que se evidencia já no recriado retrato da figura que intitula a exposição. Se a fotografia original de Henschel nos colocava diante de um sujeito anônimo – cuja altiva postura ressaltava o olhar desafiador –, a tela assinada por Fatima Farkas, apartada do retrato que lhe serviu de inspiração, evoca um ícone que o singulariza: a imagem de são Benedito, que paira diante da face que o contempla; o brilho dos olhos reflete a aura que cerca o santo, estabelecendo um íntimo vínculo entre um e outro (e, por essa via, de algum modo sacralizando o próprio quilombola, elevado a figura protetora da coletividade negra). O fundo escuro preserva a necessária austeridade – mesclando-se, entretanto, à pele dos dois Beneditos, numa solução cromática que alude a uma mesma substância. Em outras telas, deparamo-nos com propostas diversas. Luiz Gama (sobre o vermelho da luta) e João Cândido (sobre o azul do mar) nos encaram frontalmente, com olhares de indagação e desafio – que aludem, de algum modo, aos sentidos históricos que a todos atravessam: se as lutas das quais participaram se prolongam até a contemporaneidade, cabe a nós assumir uma posição.


Ao retratar, em suas obras, tantas existências negras (ou suas ausências, pela visibilização do vazio), Fatima Farkas as presentifica, unindo-as em um mesmo território: vultos históricos, vidas anônimas, rostos conhecidos ou não – constituindo, afinal, um preito ao que significam: um perene enfrentamento às forças impulsionadas pelo ódio. Será, sim, o Benedito – bem como serão “Beneditas” –, vivos e redivivos, contra todos os projetos de genocídio." - Henrique Marques Samyn


Rio de Janeiro, abril de 2024.

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