"Os trabalhos de Marcela Crosman, Marcelo Gandhi e Renan Teles têm algo em comum: todos querem entender o mundo a partir do seu par oposto – a realidade virtual. Mas isso não acontece por acidente. Parece, na verdade, bastante claro a todos eles que o mundo físico e digital já não são lá coisas tão bem divididas como foram há alguns anos atrás. Codificada e programada, a realidade algorítmica é ao mesmo tempo dinâmica e estática: vive em um jogo pernicioso de compulsão por estímulo intermitente, mas que guarda a simulação enquanto pano de fundo. Performamos desde eventos fundamentais, como a construção de uma casa em 3D, até a formação de famílias ou a experiêcia da guerra em jogos digitais. Mas se tudo é número, a experiência é o impostor. Walter Benjamin já anunciava, em Experiência e Pobreza (1933), que as ações da experiência estavam em baixa na esteira de uma técnica que, àquela altura, já fantasmagorizava as ideias e se sobressaia ao homem. Mas à “nova forma de miséria”, a resposta foi estetização. Pouco entendemos disso tudo que guia comportamentos e deforma a existência, mas o ponto é que de fato consentimos a esses passos programados.
Com inteligências artificiais que ganham vida própria na proporção de um papel cada vez menos operacional, é cômico que esses avanços se tornem um terror à altura de ficções científicas obcecadas por robôs perversos ou softwares demasiado criativos. Não dá pé nenhum imaginar que a tecnologia seja razão de medo – a coisa começa por aí. E o que chamo, então, de “Futurível” é o automotivo, a tecnologia personificada, que mobiliza as garantias de um futuro que paralelamente existe e não chega, o outro sujeito possível e virtual de um tempo porvir que não se entende com o que foi prometido a seu respeito. Responsável por delimitar direções aos comportamentos e vontades, a realidade ideológica come pela beira: cria acasos programados. “O entendimento do tempo e a máquina trabalhando em parceria”, afirma ou sabe-se lá se pergunta Marcela Crosman. O fato é que o controle consiste em uma realidade inevitável quando falamos de tecnologia no capitalismo tardio. Mas Crosman assimila que essa algoritmização progressiva não é bem um inimigo, mas algo que está mais para uma cria que acabou se tornando um invasor, que penetra em nossos dias e embaralha as relações de mando e obediência, em detrimento de qualquer outra coisa.
Para a artista, a tecnologia é ainda assim, sobretudo, um instrumento. Os circuitos e redes de Marcela, que saem do plano iluminado e fumegante de computadores para habitar o mundo físico, parecem viver em um casamento forçado com a tridimensionalidade. As distinções entre real e artificial parecem obsoletas nesses trabalhos na medida em que os circuitos ambicionam uma tridimensionalidade que não chega: tomam concretude em relação ao real, mas permanecem superfícies. São as tentativas aniquiladas de transformar o digital em realidade e vice-versa que, por avizinhadas que fiquem, nunca se tocam. Algo na linha da experiência mediada que não se aceita enquanto empobrecida e passa a criar mecanismos de aproximação, como óculos de realidade virtual que encenam movimentos reais em um mundo simulado ou exposições hiper tecnológicas fissuradas por delimitar algum tipo de interatividade com o público. Marcela Crosman entende que a horizontalidade completa entre digital e físico é um devaneio, mas ela traz à pista narrativas que invertem a tomada de concretude do objeto enquanto fenômeno ao produzir trabalhos que são antes abstrações digitais mediadas pela realidade em detrimento de uma realidade mediada pelo plano virtual. Ou melhor, a tridimensionalidade de seus objetos é falseada, parece sempre perguntar sobre um mundo concretamente possível enquanto virtualização, mas recomeçam por um processo que acontece pelo avesso. São objetos originalmente virtuais intentos a assumir uma vocação física – apesar de a tarefa estar fadada ao fracasso.
Seja em um elemento real transmitido pela tela plana e luminosa ou nas formas de relacionamento mediadas por algoritmos e mensagens digitais, a questão é que a experiência e o sujeito gradualmente se esvaziam em nome desse dinamismo imperativo de um personagem abstrato, peregrinador dos esquemas da cultura de massas, presente em cada movimento das atividades mais cotidianas que se possa imaginar. É o provedor de algo de um desencontro do indivíduo consigo mesmo, de um “segundo estágio de humanóide” que não mais se reconhece ou preserva identidade minimamente plena com a consciência.
Tudo se torna uma espécie de areia movediça. Finda na colisão com significantes desgastados e estratégias parcialmente perversas em torno de interesses ocultos que encaminham a inseguranças cada vez maiores e saturantes. Entender a realidade virtual é compreender mecanismos. E as abstrações de Renan Teles, atravessadoras de imagens virtuais que paulatinamente se desmancham até desembocarem em manchas pixeladas de computador, funcionam como mecanismos desalienantes de percepção da realidade artificial.
Ao procurarem persistentemente relembrar o espectador daquilo o que se oculta por trás das altas cordilheiras das imagens em “alta resolução” dos computadores e celulares, impossibilitam uma percepção amansada e indiferente sobre essas duplicidade de instâncias da realidade. Diferente do mundo físico, concretizam-se através de pontos luminosos – essas unidades de imagem digital compostas por séries de quadrados que chamamos de “pixel” – que se revelam e deformam ao passo em que aproximamos a vista.
Se Thomas Ruff, em sua histórica série de fotografias Nudes, coloca em xeque a complexidade das relações entre sexo e pornografia por meio de imagens de atrizes nus apropriadas da internet em estado pixelado e deformado, Renan Teles parece levar a premissa ao extremo ao optar pela deformação de imagens virtuais a ponto de perderem a sua figuração. As fotografias lembram o que, no fundo, é a imagem artificial. Isto é, desmembram a possibilidade da vivência do virtual com a experiência concreta: as duas se distanciam por um dado propriamente matérico – uma é pixel, a outra é víscera. Na medida que nos trabalhos de Marcela o virtual tenta adquirir concretude ao se transformar quase que em um intruso na realidade quando a penetra e toma certa tridimensionalidade falseada, as fotografias de Renan, por sua vez, problematizam o elemento radical, a matéria, que fundamenta cada uma dessas imagens.
Como que perdidos em meio a esse embaralhamento progressivo das experiências, o mundo se confunde com a realidade virtual, é penetrado por imagens artificiais e reprisadas. Mas, quando se fala de uma extensão desse elemento a toda a problemática que envolve a cultura de massas e suas respectivas narrativas ideológicas e alienantes, bem como os algoritmos articuladores de eventos programados, esse impasse se estende a dados psicológicos também de embaralhamento das distinções entre realidade ficcional e real.
Voltando às fotografias de Ruff, o artista, em Nudes, parece procurar entender o que é esse imaginário associado à pornografia que passa a se misturar com ambições em torno de relações sexuais reais: as expectativas de performance se elevam à altura de um filme ficcional. Os trabalhos de Marcela, Gandhi e Renan anseiam entender de que maneira são obliteradas essas divisões entre expectativas reais e ilusórias, vontades autênticas e embutidas, escolhas individuais e guiadas que extrapolam os muros profundamente baixos da cisão psicológica entre fato e ficção. E essas são, provavelmente, algumas das principais questões que titubeiam já há uns belos anos a produção de Marcelo Gandhi. Em suas telas de grandes formatos, repletas de rabiscos que se tornam quase arabescos e signos sexuais ou elementos massificados que randomicamente impregnam o plano, o artista joga com o desencontro criado pela experiência pós-digital, cosmopolita e artificializante, em relação à diferença entre pulsão real e vontade programada.
O Suco de máquina, como é intitulada uma de suas séries, é também o produto da mediação realizada por essas inteligências eletrônicas estranhas à consciência cerebral. Quando canta “Futurível”, Gilberto Gil enuncia um mundo em que “a felicidade é feita de metal”. Mas a felicidade de metal nada é além do produto de um duplo caráter da mercadoria derivado do duplo caráter do trabalho – constituído em formas distintas de valoração – que tratam determinados objetos como quantificadores universais. São, sobretudo, convenções determinadas e em relação as quais não se imagina a possibilidade de vida social alheia (e que, no fim das contas, é aquilo o que a domesticação do capital procura alastrar a todo custo).
Para Gandhi, Gotham City não é um devaneio. Está aí, caminhando diante de toda a consciência coletiva, junto dos elementos mais factuais possíveis. O sexo é programado, as vontades são programadas, as ações são programadas e os enredos de filmes, séries ou gibis de super-heróis constroem todo um imaginário geral. De volta à estaca zero: a realidade se aproxima do número, termina em algo abstrato. Futurível adora isso, sonha com isso. O que reúne esses três artistas aqui é precisamente a tentativa mútua de escancarar os esquemas do invasor. Não é uma guerrilha porque não há inimigo, mas também não estamos lá muito distantes de um estado de sítio. Negociações fazem parte do jogo, mas a artificialização gradual é domesticadora. Esses trabalhos são, talvez, um convite, uma (espero que não a última) chance de enxergar a abstração de futurível. Pulsão é criação estética, sem dúvida. E, por virtuais que possam inicialmente parecer, se há algo que esses trabalhos entendem muito bem é precisamente que a experiência visceral só pode existir em uma única realidade, concreta e diretamente experienciável – a qual, diga-se de passagem, garanto que não vive em exposições imersivas." - Gabriel San Martin
Futurível
Marcela Crosman, Marcelo Gandhi e Renan Teles
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