Falemos de casa, da morte. Casas são rosas
Para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança
Nos abandona para sempre.
Herberto Helder – Falemos de Casas
"Uma das pinturas apresentadas nesta exposição, ponto de partida de toda uma série composta por planos recortados, pinturas fora do padrão quadrangular, irregulares como as paredes arrematadas em diagonais de casas antigas com coberturas em tesouras, ou ainda casas em construção com andaimes e platôs provisórios, assemelha-se a uma porta encimada por uma arcada de madeira escura cuidadosamente esculpida, cuja moldura escorre lateralmente até fechar-se na base como um batente linear e exato, a lembrar que uma porta dá acesso ao universo e permite que se retorne dele. Mas nessa porta/pintura estaca-se à entrada. Há um texto aplicado sobre ela, com o apuro de uma página de um livro. Como tal, sugere ser lido, mas não pode ser lido. O artista o escreveu e ele próprio, agindo como se fora outro, desfez o que foi feito, rasurou-o, interditou-o.
Sergio Fingermann defende que o papel da arte, no seu caso, pinturas e gravuras, não transcreve o mundo, mas rivaliza com ele. Ao mistério do mundo ele fabrica seus próprios mistérios, com o mesmo labor e cuidado de quem constrói casas. Pensemos em casas, pensemos, como lembra Olga Tokarczuk, no poder da arte em permitir que participemos de experiências que de outro modo não nos seria acessível. Desde crianças vivemos em mundos criados por artistas variados, habitamos suas casas, sejam elas naves espaciais ou os seres encantados do Torto Arado, de Itamar Vieira Jr. Passamos a vida à transitar pelas casas de Homero e Euclides, pais, respectivamente, da poesia e da geometria, à prosa e poesia desconcertantes de Clarice Lispector e Orides Fontela. Para não falar das construções engendradas por diretores e atores de cinema, de teatro, dos responsáveis por escultura, pelas variadas linguagens que ajudam a moldar nossa presença no mundo.
Fingermann, nesta exposição, trata de casas como se as projetasse sobre espelhos, achatando os planos, sobrepondo móveis, aglomerando paredes com janelas e telhados, justapondo, organizando ou explodindo os elementos que as compõem, como as coberturas em que as linhas finas dos caixilhos e das bordas dos vidros jogam com a trama grossa das traves de madeira, com a ondulação dos planos divergentes das telhas, a clarabóia deixando entrever o céu lá de fora, azul ou incendiado.
Casas, segundo o artista, são o centro de tudo, especialmente essas casas que trazemos dentro de nós, como um certo filme de Fellini que nos emociona, que nunca esquecemos, que nos habita e que sempre habitaremos. Essa é a singular compreensão do espaço da pintura por parte do neto de um homem nascido na Ucrânia, um imigrante que era ator de teatro ídiche, cujo trabalho vinha à luz a partir da cortina que se abria, fendendo a realidade para escancarar uma outra realidade, ajudando a amenizar o cotidiano insegura de sua comunidade." - Agnaldo Farias
Em 09/09/2023 a Dan Galeria Contemporânea abriu a exposição “O Espaço da Pintura” do artista Sergio Fingermann, com curadoria de Agnaldo Farias. Confira as fotos do evento: https://www.arteempauta.com.br/09-09-2023-o-espaco-da-pintura
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