Haveria assim, nessa alternativa, a etapa dialética […] que consiste em não apreender a imagem e em deixar-se antes ser apreendido por ela: portanto, em deixar-se desprender do seu saber sobre ela. O risco é grande, sem dúvida. É o mais belo risco da ficção. — Georges Didi-Huberman
Nos trabalhos de Consuelo Veszaro estruturas-criaturas parecem habitar um mundo silencioso, ao mesmo tempo instável e permanente. Mas uma descrição como essa, embora seja verossímil, é insuficiente para descrevê-los, cujo significado parece sempre escapar a quem os observa. O conjunto apresentado sugere que as obras se desdobram umas nas outras, recusando qualquer ideia de evolução, ou lastro, matriz primeira da qual derivam. As obras tampouco se ancoram numa representação do real, em algo que lhes é externo, apesar de serem constituídas pela realidade da matéria — espessa, no caso das pinturas, ou por superfícies de variações sutis, no caso das esculturas, próprias à natureza do material. Em outras palavras, a matéria é parte constitutiva dos trabalhos que, paradoxalmente, se apresentam como virtualidade, desenho.
De perto, é possível ver as pinceladas de óleo ou acrílico, e também o rastro do objeto que retirou camadas de tinta. Em alguns casos, um sulco feito quando a tinta ainda estava fresca; em outros, pequenas partes craqueladas pela ponta-seca que riscou a superfície já endurecida. Há um aspecto intimista nesse olhar que se aproxima, mas que não revela “segredos” ou subjetividades de ninguém. Às vezes há o rastro, como nas paredes de uma cela, mas a “história” — se é que houve alguma — se perdeu.
Esculturas finas se apoiam diretamente no chão, estão escoradas em paredes, chegam na altura do teto. A artista articula cada um dos fragmentos em suas extremidades, construindo as estruturas que são, afinal, a própria obra: a matéria e os vazios criados por ela, num diálogo evidente com o espaço que as acolhe. Pinturas e esculturas existem em sua realidade tangível, mas não representam nada que lhes é externo; elas encarnam, por assim dizer, a própria virtualidade.
Segundo o historiador da arte Georges Didi-Huberman: "A palavra virtual quer sugerir o quanto o regime do visual tende a nos desprender das condições “normais” (digamos antes: habitualmente adotadas) do conhecimento visível. […] O acontecimento da virtus, do que está em potência, do que é potência, nunca dá uma direção a seguir pelo olho, nem um sentido unívoco à leitura. Isso não quer dizer que seja desprovida de sentido. Ao contrário: ela extrai da sua espécie de negatividade a força de um desdobramento múltiplo, torna possível não uma ou duas significações unívocas mas constelações inteiras de sentidos, que estão aí como redes cuja totalidade e o fechamento temos que aceitar nunca conhecer, coagidos que somos a simplesmente percorrer de maneira incompleta o seu labirinto virtual."
Imersos no espaço expositivo, somos convidados a dar um passo atrás — literal e metaforicamente —, não para “decifrar” as imagens, mas para nos deixarmos afetar pelas linhas de força, pela mistura sutil de cores, pela integridade dos vazios, ou pela instabilidade das formas, na iminência de um movimento. Mas este é, também, um arranjo provisório, e as relações estabelecidas pela proximidade dos trabalhos existirão apenas durante o tempo da exposição — ainda que guardem, numa outra virtualidade (registros fotográficos, por exemplo), um diálogo formal.
A instabilidade parece ser um dos elementos centrais da obra de Veszaro, assim como o acaso e os espaços vazios que se constróem em negativo, ou seja, no espaço circunscrito pelas linhas ao mesmo tempo reais e virtuais do desenho. Desenho: não como representação, mas como desejo, algo que guarda em si o potencial de extrapolar a própria realidade conhecida.
É preciso então, diz Huberman, voltar ao mais simples, isto é, às obscuras evidências do ponto de partida. É preciso deixar por um momento tudo o que acreditamos ver porque sabíamos nomeá-lo, e voltar a partir daí ao que nosso saber não havia podido clarificar. É preciso portanto voltar, aquém do visível representado, às condições mesmas de olhar […].
Olhar. Para grande parte das pessoas, um gesto tão banal que frequentemente se ignora a quantidade de operações intelectuais, associativas e interpretativas envolvidas nele; operações ancoradas histórica e socialmente no sujeito que vê. O trabalho de Veszaro — instável, intimista, opaco — parece nos fazer voltar aquém das imagens e dos objetos. A um mundo virtual. Não aquele da internet ou das redes sociais em que circulam milhões de imagens rapidamente decodificáveis, mas o virtual do possível, do desenho. Que, no entanto, está lá: diante de quem se dispõe a olhar. E quem sabe, um espectador interessado pode tornar-se, ele também, virtual, devir, desejo, na medida em que não “apreende” as imagens, mas deixa-se ser apreendido por elas. “O risco é grande”, disse Huberman, mas, de fato, é também “o mais belo risco da ficção”.
Mariana Leme
Em 18/01/2024 a Zipper Galeria abriu a exposição "A Expansão da Linha" da artista Consuelo Veszaro. Confira as fotos do evento: https://www.arteempauta.com.br/18-01-2024-zipper
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