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"Deitar o vermelho sobre o papel branco para bem aliviar seu amargor" por Galciani Neves



Galciani Neves - Créditos: Leda Abuhab

A terra, todo o trauma e a fome causados por sua perda e a luta pela reapropriação do

chão de origem têm questões históricas com feridas abertas. E, mesmo que pouco

suportemos revisitar esse martírio, é preciso atenção para apontar e atacar os

dispositivos de dominação que se fazem acobertar por negociações lucrativas, sempre

atuantes graças a muitas politicagens e a uma assimetria vertiginosa de poder. Cá

estamos. Mãos, pés e bocas famintas. Do grão da terra, do vento e da água que

bordam a terra, do alimento gerado com a terra. No Brasil, a Constituição forjou o

discurso de que a nação deveria acolher um povo plural e a diversidade de suas lidas

com a terra. Na prática, o poder nunca organizou mínimas condições necessárias para

que comunidades tradicionais se consolidassem e seguiu operando com

procedimentos que invisibilizam todes, suas ancestralidades e suas sabenças. A lei não

bastou, o direito não foi garantido e as cosmologias foram alijadas dos trâmites

institucionais, culturais e sociais do país.


Em seu percurso como artista, Fabio Baroli adentra, descortina e convive com as

tramas desses processos. Paisagens, arquiteturas vernaculares, personagens, terreiros,

ferramentas, elementos de ambiência, muitas espécies de seres vivos (galinhas, bois,

árvores estão sempre figurando em seus trabalhos) fabulam as diferenças sociais e as

resistências ao projeto colonialista que atinge os mais vulneráveis: pobres, pessoas

negras, indígenas, ribeirinhos, quilombolas, mulheres, crianças, enfim, sujeitos que

enxergam e praticam outros mundos possíveis, com concepções justas e valores

éticos.


A linguagem que conta as histórias dessa terra e corpos é a pintura, compreendida

pelo artista como um processo que tem como intenção produzir imagens que são

espelho e lugar de reconhecimento de subjetividades, partilhar contextos e convidar à

potência criativa para imaginar pensamentos e ações diante desse cenário distópico

em que vivemos. Nesse sentido, podemos destacar o que nos ensina a artista Cecília

Vicunha: “O significado de trabalhar uma dimensão entre arte e meio ambiente é

recuperar uma dimensão profunda da existência humana”.


Matutar-se, como diz o próprio artista, é um dos seus procedimentos experimentais.

Ao encontro com o lugar onde nasceu, Baroli desenvolve um conjunto de trabalhos de

natureza autorreferencial, que se manifesta a partir do sentimento de pertencimento à

cultura e ao lugar de origem, mas que, como ele propõe, estabelecesse diálogos e

relações que se ampliam com a iconografia ocidental relacionada à vida camponesa na

história da pintura. Baroli nasceu em Uberaba e é por Minas Gerais adentro que

investiga as marcas da colonização, das cercas, da exploração latifundiária. E assim foi

ficcionalizando em narrativas visuais a cultura caipira, o matuto, o céu bonito de

chuva, a terra que se faz vermelha de sangue das tantas gentes que queriam habitá-la,

a partir de biointerações, como nos diz Nêgo Bispo.


Em "Deitar o vermelho sobre o papel branco para bem aliviar seu amargor" , Baroli apresenta trabalhos que presentificam as relações entre corpo e território, entre personagens e seus modos de sustentar a vida, entre as tantas espécies que se integram, compartilham e que vivem confluindo existências. O título da mostra refere-se tanto à terra e suas cicatrizes como ao gesto de pintar como expurgo. As cenas em seu trabalho se projetam tanto como uma descrição/invenção desses territórios com homens, mulheres, caipiras e o jeito como repousam o corpo e suas ferramentas cotidianas, como apresentam um lugar pouco conhecido e muito estigmatizado –aquele lá longe, comumente reconhecido como roça, natureza, “terra de ninguém”, “interior do interior”.


Vale ressaltar que na constituição dessas cenas, Baroli elabora também espaços

incompletos, esvaziados, que são como rupturas, pausas bruscas nas cores e nas

formas. Essas pausas se deixam também complementar com e em outras pinturas do

artista, se conectam pela diversidade de assuntos, pela contiguidade de acontecimentos. Podemos pensar que sua pintura parece mesmo ser uma espécie de instrumento ou lente que, pela sua condição intrínseca de pertencimento a estes lugares e condições de vida, se presta a narrar os espaços, os modos de produzir vida, ao mesmo tempo em que são resultado de uma escuta que traduz e expõe à crítica o projeto colonial: a monocultura extensiva, a imposição do excedente de produção, as grandes obras de engenharia ambiental... O boi está presente em duas instalações Genealogia da devastação e Chaga, nas quais o artista propõe uma crítica à exuberância do animal em relação ao espaço que ocupa. No Brasil, a pecuária

extensiva invade terras. E, como sabemos, o boi é um dos personagens que reafirma a relação do colono com a terra e também o protagonista de muitas manifestações artísticas. Integra a mostra um pequeno conjunto de pinturas de ferramentas e utensílios que trazem as marcas da lida, da terra, do gesto da mão trabalhadora. São objetos de uso e de memória. No caso de Baroli, a pintura não distingue corpo e ferramenta, visto que o trabalho e o corpo de quem trabalha fazem a liga, sem apartar o trabalhador e o fruto de sua obra.


E as gentes que figuram em seus trabalhos, curiosamente, não nos fitam os olhos.

Estão a alongar o olhar: para a terra, para o meio do tempo? Quem sabe esperam o

que não há como prever – o eco da semente, a gota caindo no chão, a terra se

regenerando...? E aí, nesses instantes de devaneios, nos levam pelas mãos, para

experimentarmos a roça, o lugar, a terra, as ferramentas e o que se constitui em toda a

lida com a roça, que são aspectos fundamentais no fazer poético de Baroli, assim como

pontuou o artista Macuxi Jaider Esbell “A gente-roça não sabe conversar com quem não

pode ouvir. Mas a gente cresce por todos os lados buscando acolher. Colhemos, somos

roças coletoras. (...) Sem roça não dá! Como é que vou amar? Onde é que vou morar,

descansar, me proteger?” (Jaider Esbell, 2020).


Galciani Neves

(julho/2023)


Em 03/08/2023 a Zipper Galeria abriu a exposição “Deitar o vermelho sobre o papel branco para bem aliviar seu amargor" de Fábio Baroli com curadoria de Galciani Neves. Confira as fotos do evento: https://www.arteempauta.com.br/03-08-2023-zipper-galeria



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