Conheça a correspondência do mestre da luz e sombra, que visitou o país em 1849
Édouard Manet, um mestre da luz e sombra, foi uma criança espevitada. Não era lá tão aplicado no Liceu, o que fez com que fosse reprovado em diversos caminhos escolares – como a carreira de marinheiro, que ambicionou na juventude. Ao invés de pegar em armas, remos ou cordas, Manet, com apenas 16 anos embarcou a bordo do "Havre et Guadeloupe" em direção ao Brasil, país que no final do século 19 inspirava jovens franceses por conta do exotismo evocado pelas pinturas idílicas e naturalistas dos acadêmicos europeus que aqui estiveram para retratar a exuberância da natureza – e a decadência da corte. No caminho, o pintor fez a alegria de companheiros de viagem com caricaturas do cotidiano arrastado no navio-escola que cruzou o Atlântico na passagem dos anos de 1848 para 1849. A travessia durou cerca de dois meses até a embarcação aportar no Rio de Janeiro. Entre turbulências e maremotos, Manet pode exercitar o ofício de missivista compulsivo, tendo escrito, quase todos os dias, à mãe. Esses relatos do jovem pintor reluzem em uma esmerada edição pela editora Ercolano. ‘Manet no Rio' mostra como a viagem aos trópicos influenciou a pintura e marcou uma nova percepção das cores pelo pintor francês. Com textos de apoio do professor Felipe Martinez e da pesquisadora Alecsandra Matias, a edição apresenta notas explicativas, sem recorrer a revisionismos ou abreviações. Ao contrário. Seus editores escolheram contextualizar termos preconceituosos, datados e até equívocos do marinheiro de primeira viagem, que se referia a golfinhos como peixes, ao passo que também se aborrecia com a escravidão – mesmo que as palavras (e a consciência de um jovem europeu abastado) não fossem das mais agradáveis ao descrever grande parte da população brasileira. “Neste país, todos os negros são escravos; todos esses desventurados têm o semblante embrutecido; o poder que os brancos exercem sobre eles não é normal; vi um mercado de escravos, um espetáculo bastante revoltante para nós; os negros vestem uma calça, às vezes uma blusa de pano grosseiro, mas, em sua condição de escravos, não têm permissão para usar sapatos”, descreve o pintor na primeira carta escrita à mãe em solo brasileiro. Com prefácio E notas de Régis Mikail, a edição é acompanhada de desenhos e rascunhos do francês, que observou o contorno malemolente das mulheres negras que se defrontou, atribuindo, contudo, beleza, às outras mulheres (brancas), as quais chama de “brasileiras”. Na cabeça pueril de Manet, o mito da brasileira sensual e faceira é desfeito, como comenta o narrador: “As brasileiras costumam ser muito distintas e não merecem a reputação de levianas a que se atribui a elas na França; ninguém pode ser mais pudica e tola do que uma brasileira, elas nunca aparecem de dia na rua; de noite, apenas às 5 horas, todas vão para as janelas, somente então se pode espreitá-las à vontade”. Impressionado com a precariedade da então capital federal, Édouard Manet, no entanto, ficou boquiaberto com a beleza natural do Rio. Foi influenciado pela luz solar abundante, conferindo especial mirada aos reflexos dos raios nas ondas do mar, como quando visitou a baía de Guanabara. Como defende o professor Felipe Martinez, no posfácio, embora tenha “apontado caminhos aos impressionistas, não deve ser confundido com eles”. Autor dos famosos nus femininos pintados em Olympia e Almoço na Relva, Manet conferiu a suas criaturas um semblante atordoado, meditativo, em estilo figurativo e próximo ao realismo, como se verá em trabalhos posteriores, como O Tocador de Pífaro. Essa proximidade com o estado cotidiano, esse peso de realidade, é o elo entre Manet e a gênese das desgraças humanas, que começam justamente na figura de suas criaturas, engravatadas e de fardas, capazes de escravizar e causar dor. Embora se deixe guiar pelas luzes e sombras do clima tropical, Manet retorna à Europa impactado pelo racismo e as mazelas presenciadas no Brasil. Na França pintou a negra Laure, em 1862, retrato de uma imigrante de admirável fisionomia e serenidade. Evidentemente, motivo de choque para a parcela conservadora, incomodada quando o foco foi colocado em um afrodescendente de forma positiva. Manet, embora vivesse em uma sociedade racista, não passou despercebido pela miséria humana. Não teve a carreira jurídica ou as credenciais aristocráticas esperadas pelos pais, mas seguiu fiel ao seu ofício, se não como marinheiro, mas levando as lições aprendidas a bordo para a vida, fizesse sol ou tempestade.
Matheus Lopes Quirino é jornalista e escreve sobre artes visuais e literatura. Foi editor-assistente do caderno Aliás, suplemento de livros do jornal O Estado de São Paulo.
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