"Na obra que vem criando há 25 anos, Rommulo Vieira Conceição dialoga com ideias do geógrafo Henri Lefebvre e do historiador Michel de Certeau. Em La Production de l’Espace, de 1974, Lefebvre teoriza sobre como o espaço é produzido socialmente, cabendo às pessoas resistirem à sua reificação e configurarem ambientes próprios aos seus modos de vida. L’Invention du Quotidien, 1. Arts de Faire, livro publicado seis anos depois por Certeau, foca exatamente nas dinâmicas espaciais que as pessoas deflagram com suas práticas culturais, transformando cotidianamente os lugares instituídos. Mais do que pensar como as pessoas reconfiguram os lugares em que vivem ao lidarem com as coisas que encontram e inventando artefatos, Vieira Conceição se insurge artisticamente contra as limitações impostas pelo ambiente socialmente institucionalizado.
De grande amplitude, sua reflexão mobiliza montanhas, matas, mares e nuvens, além de estradas e cidades, espaços domésticos e de trabalho, cinemas, mercados, estações ferroviárias e parques infantis, e ainda objetos os mais variados, presentes no mundo à sua volta ou em contextos bem distantes, tanto geográfica quanto historicamente. Também articula princípios, procedimentos e precedentes da arte, ciência e outras esferas sociais. Um processo que gera obras com inusitadas configurações objetais, sejam singulares peças gráficas que oscilam entre o desenho e a fotografia, sejam artefatos e instalações assumidamente disfuncionais.
Não foi estranho, portanto, um tijolo ganhar proeminência em certo momento do processo de produção desta exposição. Ele tornou-se mais que necessário, passou a ser indispensável, urgente, precisando ser materializado. Peça chave de uma obra, O espaço pode ser silêncio e pausa, de 2023, e dessa mostra, que a partir dele é nomeada, este tijolo é um indício do trabalho de Vieira Conceição.
O tijolo cerâmico é uma categoria quase universal, sendo usado há milênios em diferentes sociedades humanas. No Brasil, o tijolo cerâmico de seis furos – tipo usado pelo artista – é um elemento comum na construção civil, presente que esteve e está nos mais diversos edifícios país afora. Embora seja largamente difundido, seu significado e valor variam socialmente em relação a sua visibilidade. O tijolo de seis furos vale quase nada onde é útil, porém praticamente invisível, quase sempre oculto em edifícios que exibem materiais, entre outros elementos, que ajudam a situar quem ali vive no topo da hierarquia social.
Simetricamente, este tijolo é um indício da desvalorização social dos edifícios e ambientes onde sua visibilidade é ostensiva, como nas margens e periferias das cidades brasileiras; menosprezo inerente ao processo de subalternização de quem as habita. Contudo, como todo artefato histórico, o tijolo cerâmico tem passado e presente, mas está aberto ao futuro. Estruturante, forte, íntegro e polivalente, capaz de servir à (re)configuração do ambiente da vida, o tijolo guarda em si a possibilidade da mudança social.
O tijolo não é de todo excepcional no trabalho de Vieira Conceição, que também tem pensado as tensões entre espaço e lugar a partir da arquitetura, explorando elementos com funções construtivas, ornamentais e simbólicas. Além de O espaço pode ser silêncio e pausa, veja-se, à guisa de exemplo, a série Através, cuidadosamente, de 2009-2012, Em suspensão, de 2019, e O espaço físico pode ser um lugar abstrato, complexo e em construção, instalado no Instituto Inhotim em 2021. De qualquer modo, embora seja corriqueiro no mundo, o tijolo de seis furos é insólito na arte (se algo ainda consegue ser impróprio à esfera artística...). Sobretudo porque Vieira Conceição não se vale de um tijolo usual. Seu tijolo é de prata. Como estamos no campo da arte, com suas verossímeis ficções visando à verdade, interessa menos o valor intrínseco deste metal, que é simulado, e mais o que ele significa, seu valor sociocultural. Importa o brilho da prata.
Não causa surpresa a emergência do prateado em O espaço pode ser silêncio e pausa e outras obras recentes de Vieira Conceição. A cor é não apenas constante, é mesmo um elemento chave de sua obra. Uma certa paleta cromática dá o tom de sua poética. Ela é composta por cores historicamente classificadas como primárias e secundárias, apresentadas em tons puros, no nível máximo de saturação e com luminosidade no ponto de equilíbrio. Esse modo de propagação intensa e vibrante da cor se alterou recentemente. No desdobramento de seu trabalho, o artista avançou na investigação sobre as relações entre cor e luz. Derivado de necessidade e desejo, esse movimento o conduziu ao resplandecer. Essa estética do luzidio não é, contudo, ingênua ou frivolamente solar. Ela é a luz de uma reflexão poética de cunho crítico, ativa como a arte pode ser, que visa a transformar o mundo. A cor e o brilho são meios estéticos de atração das pessoas. São modos artísticos de ressaltar o que é comum, banal até, e permanece socialmente invisível. E de transmutar o trivial tijolo em objeto extraordinário.
Para Vieira Conceição, o tijolo de prata é uma declaração de princípios. Metonimicamente, é a sua obra. Ele acredita na potência do tijolo e, mais especificamente, no tijolo de prata. Oxímoro objetal, seu excêntrico artefato opõe-se à cultura da precariedade, ao elogio do improviso, à gambiarra. E faz fulgurar o que – e, por extensão, quem – é socialmente depreciado, desdenhado.
O tijolo também é uma arma. Mas o artista a quer diferente da bala de prata; com brilho sem ressonâncias espirituais e religiosas, seu tijolo recusa soluções miraculosas ainda que efetivas. Suas obras instauram, propõem e convocam um estado permanente de reflexão ativa. Na série Tudo que é sólido desmancha no ar, de 2017, os componentes e estruturas arquitetônicas cintilam discretamente enquanto flutuam entre o desmonte e a iminência de se rearticularem. No tijolo de prata, em O espaço pode ser silêncio e pausa, na obra de Vieira Conceição, sua proposta de incessante desarranjo e reconstrução do real lucidamente reluz." - Roberto Conduru
Confira as imagens do evento de inauguração das duas exposições que aconteceram na galeria Aura em 31/08/2023 aqui.
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