
Uma mulher está sentada numa cadeira de madeira, com o olhar fixo para a frente,
como quem encara o horizonte. Os cabelos são volumosos e estão elegantemente
penteados para a parte de trás da cabeça. Suas duas mãos se encontram ao se
encostarem no braço da cadeira. As vestes carregam tons de branco com detalhes
serpenteados em rosa e verde, contrastando com um pedaço de parede logo atrás
dela que carrega padrões geométricos em tons avermelhados terrosos. O muro
serve como divisória para que, ainda mais ao fundo da imagem, vejamos uma
paisagem com um céu densamente azul que se contém acima de um vibrante
panorama de pequenos morros verdes e amarelados.
A imagem descrita é uma das telas compostas pelo artista paulistano Rafael
Pereira. O esforço por realizar uma descrição minuciosa dessa pintura está
diretamente proporcional à quantidade de atenção aos detalhes que o artista insere
em seus trabalhos, compondo de maneira sofisticada uma visualidade que põe em
tangência algumas das linguagens tradicionais da pintura: o retrato, a paisagem e a
natureza-morta. No entanto, embora recorra a essas consagradas trilhas visuais da
História da Arte, Pereira o faz de modo específico ao implementar de maneira
intercambiada essas visualidades e as interpreta a partir de seu próprio repertório
pictórico brasileiro, através de pinceladas vigorosas e um cromatismo que alterna
vibração –presente em verdes e azuis – com cores mais sóbrias, principalmente no
branco e no marrom.
Rafael Pereira nasceu em São Paulo, em 1986, e começou a pintar de maneira
autodidata aos 18 anos, quando ganhou de presente de aniversário um conjunto de
tintas e papéis. Contudo, é a partir dos 23 anos de idade que, em tempo integral, se
dedica à pintura. Apesar de ter nascido na capital paulista, Pereira transitou em
diversas cidades e geografias brasileiras, como as cidades de Novo Airão, no
Amazonas, Ouro Preto e Teófilo Otoni, em Minas Gerais, Pontal do Paraná, no sul
do país, até chegar em Caraguatatuba, no litoral paulistano, onde hoje vive e
trabalha. Esse percurso por diversos lugares fez com que Pereira se constituísse
como um observador dos trânsitos humanos e das mutações das paisagens,
acumulando, ao longo da sua vida, memórias afetivas e artísticas que lhe
possibilitaram possuir um complexo repertório visual, agora apresentado por meio
de uma pintura marcada por uma vitalidade e uma elegância cromática.
Os retratos apresentados pelo artista, recorrentemente, possuem um binômio
dentro/interno-fora/externo, na medida em que, embora ele esteja interessado em
realizar composições em que rostos figurem em uma posição de centralidade,
também o entorno da pessoa retratada tem uma preponderância para dar mais
sentido visual e conceitual à obra. Talvez essa predileção tenha relação com o fato
de o artista ensejar localizar os personagens dentro de um cenário ou mesmo de um
ethos. O fundo da pintura, na linguagem de Pereira, não é apenas uma maneira de
destacar a figura, e sim uma ação de revelar mais um dado semântico para a obra –
já que em alguns momentos se descortinam, por exemplo, a textura do mar ou
casarios históricos, paisagens geográficas que fazem parte do imaginário e do lugar
afetivo do artista.
Pereira, ao realizar retratos e ao pintar paisagens que muitas vezes são
reconhecidas como “cenários brasileiros”, vem na esteira de uma tradição retratista
brasileira moderna. No entanto, o jovem artista paulistano cria uma cisão com essa
mesma escola modernista: a de retratar o Outro, ocasionalmente, de maneira
exotizante e estereotipada. Como as pinturas de Rafael têm como ponto de partida
as suas memórias visuais bem como uma produção que pode ser analisada na
chave do que hoje se chama de “arte afro-brasileira”, o artista tece os seus
trabalhos a partir do campo do afeto, sendo suas figuras sensivelmente familiares
ao seu próprio pertencimento sociorracial.
Outro dado biográfico fundamental para entendermos o conjunto da obra de Rafael
Pereira é o fato de ele ter trabalhado, como uma das suas primeiras profissões, no
exercício de lapidador de pedras preciosas – ofício aprendido em Minas Gerais,
local que historicamente ficou marcado por toda a exploração das pedras preciosas
e pela sua forte identidade ligada ao Barroco (presente em casarios e igrejas) e às
identidades afro-brasileiras. Ao nos aproximarmos das obras apresentadas na
primeira exposição do artista na Galeria Estação – que o artista dedica à sua mãe
Maria do Carmo Alves Jardim e à memória do seu pai Dilson Pereira Ramalho –
notamos que essa experiência com o fazer da lapidação reflete no esmero do gesto
artístico, na medida em que ele se debruça na elaboração dos detalhes e minúcias,
presentes especialmente em estamparias de roupa, fundos de paisagem ou na
construção de espécies de ornamentos em volta ou em uma posição lateral às
pessoas retratadas.
Isso nos leva a pensar que Rafael Pereira apresenta como exercício artístico não
somente um fecho de luz do seu tempo, o que o constitui como um artista do
contemporâneo capaz de refletir sobre sua própria realidade, mas também um
lapidador de imagens que, ao seu modo, constitui arestas e bordas, regiões de luz e
sombra, relevos mais brilhantes e mais foscos, agora, utilizando telas, tintas a óleo e
pinceis, na construção de um universo próprio que, longe de se preocupar em
revisitar cânones representacionais do moderno, nos põe a ver o afeto, a singeleza
e a cor como pulsões de vida.
Rafael Pereira inaugurou exposição "Lapidar Imagens" , com curadoria de Tiago Sant'Ana, segunda-feira (13/11/2023) na Galeria Estação, em Pinheiros. Confira as imagens do evento: https://www.arteempauta.com.br/13-11-2023-expo-lapidar-imagens
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