"Com a proximidade das comemorações dos 50 anos da primeira exposição individual de Tunga (1952-2016), realizada em 1974 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ), o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP), com apoio do Instituto Tunga e da Millan promove a primeira retrospectiva sobre sua obra audiovisual, paralelamente à realização da 35ª edição da Bienal Internacional de São Paulo. Durante dois dias serão apresentados três dezenas de registros, entre filmes e vídeos, inclusive um inédito, gravado em 2015 pela documentarista francesa Marian Lacombe no estúdio de Tunga, no Rio, que explica a origem e o sentido da grande instalação que os visitantes do museu podem ver na sala de vidro do MAM paulistano, Eu, Você e a Lua.
Concluída um ano antes da morte do artista, essa obra monumental é uma espécie de síntese das preocupações filosóficas de Tunga. No registro visual feito por Lacombe, Tunga conta como sua obsessão pelo aspecto antediluviano da Terra o levou a encontrar um tronco petrificado com mais de duas toneladas, marco zero dessa obra que ocupa no MAM de São Paulo o mesmo espaço antes destinado à grande Aranha de Louise Bourgeois, artista, aliás, com quem a obra de Tunga, igualmente marcada pela escola surrealista, guardava estreita afinidade.
Nessa representação alegórica da relação humana com o transcendental, em que dedos apontam simultaneamente para o céu e a terra, Tunga fecha um ciclo iniciado com a perturbadora obra ÃO (1981), filme e instalação sonora de 1981. Projetado em loop, o filme é um continuum. Não tem começo nem fim, rodado numa seção do morro Dois Irmãos, no Rio, usando na trilha sonora uma canção de Cole Porter (Night and Day) interpretada por Frank Sinatra.
ÃO é uma das obras apresentadas na retrospectiva, que cobre toda a carreira de Tunga. Há nela tanto registros de performances memoráveis (Xifópagas Capilares entre Nós e Laminadas Almas, ambas de 2007), como entrevistas inéditas de Tunga, entre as quais a anteriormente citada, da cineasta Marian Lacombe.
Entre os vídeos que registram a instalação de obras monumentais de Tunga destacam-se as produções da escultora e videomaker inglesa Shelagh Wakely (1932-2011), que acompanhou, por exemplo, o processo embrionário de montagem de À La Lumière de Deux Mondes (2005) antes de sua instalação sob a pirâmide do Louvre (Tunga foi o primeiro artista brasileiro contemporâneo a expor no museu parisiense). Shelagh, que conheceu Tunga em 1989, durante uma exposição do artista na Whitechapel Gallery, em Londres, tornou-se sua amiga e de muitos brasileiros que recebeu em sua casa londrina em Kentish Town. Também é dela o registro em vídeo de Lucido Nigredo na Bienal de Lyon do ano 2000.
Shelagh Wakely realizou vídeos antológicos sobre criações de Tunga. Um exemplo é Seeding Mermaids (1993) em que o artista segura a própria cabeça moldada e decapitada, encenando a sua morte, como havia feito anteriormente, em 1987, na 19ª Bienal de São Paulo. Esse vídeo de Wakely enfatiza a fixação do artista nas histórias de Santo Agostinho, em particular a da mandrágora, que, por possuir raiz bifurcada em forma humana, foi associada no passado ao sêmen de um homem enforcado (e há vários bonecos enforcados na 2ª Tyne Exhibition of Contemporary Art, em Newcastle, onde foi realizada a gravação).
Em Lucido Nigredo, a câmera de Shelagh Wakely explora ainda com maior ênfase essa questão da monstruosidade, do polimorfo, do papel dos espectros, refletidos um no outro. São permutações dos mesmos elementos ligados num mesmo lugar. Concebida em 1998, a instalação foi montada um ano depois na Millan e, posteriormente, em capitais estrangeiras como Buenos Aires e Paris. Vidro soprado, esponjas do mar, bolas de cristal, bolas de bilhar, pérolas e pentes formam um emaranhado que combina opostos como “lúcido” (a luz, a consciência) e o 'nigredo' (as trevas, a ignorância).
O vídeo sobre essa obra se espelha em Lúcido Nigredo et son Ombre, do mesmo ano, em que Tunga, falando em francês, lembra do tempo em que todos éramos apenas uma só entidade, antes da separação dos continentes, criando ilhas e a imagem doentia de seres fragmentados.
Entre as performances de Tunga, algumas, memoráveis, realizadas nos anos 1990, foram incluídas na retrospectiva, assim como registros de “Instalações”. Vale lembrar que Tunga não considerava precisa a palavra. Preferia 'instauração', termo que costumava usar para se referir a esse tipo de trabalho. 'Instauração', para Tunga, refletiria uma mudança paradigmática, tanto social como artística. Assim foi com Resgate (2001) ou Nociferatu Spectrum (1999-2001), para citar apenas dois exemplos.
Muitas obras de Tunga remetem às histórias sobre Santo Agostinho. Uma dessas 'histórias', contadas ao filho pelo pai do artista, o poeta Gerardo Mello Mourão, era a do menino recolhendo 'toda' a água do mar e despejando-a num buraco na areia, sendo interpelado pelo santo e surpreendido com a resposta de que essa 'tarefa insana' era mais razoável do que tentar entender os mistérios da Trindade por meio da razão.
O artista refletiu sobre o dogma da Santíssima Trindade em performances e conjuntos escultóricos como o que o MAM/P está exibindo em sua sala de vidro, Eu, Você e a Lua (2015).
Uma questão existencial menos metafísica e mais imediata é tratada em 100 Redes (1997), o registro de uma performance pública com uma centena de homens equipados com carrinhos de mão e instalando suas redes durante um evento oficial (o Dia da Cultura) na Avenida Paulista. Essa 'manifestação' silenciosa terminou por ser também um protesto político dos participantes, recitando fragmentos de um poema de Shakespeare.
Resgate (2001), um registro da ocupação do prédio do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) em São Paulo, tem igualmente algo a ver com os excluídos, na medida em que os cobertores de cor cinza que caíam (como cordas) sobre o chão do prédio faziam referência à situação precária dos moradores de rua e presidiários.
Já Nociferatu Spectrum é o registro da abertura de uma exposição em Marselha, em 2002, que reunia peças de vidro na nave central de Vieille Charité, um edifício do século 17 que abrigava mendigos e doentes mentais. Na 'instauração', Tunga tira um sino dos braços de uma jovem artista, que se espatifa no chão. Ele age como se alguns objetos devessem ser sacrificados. O espectro do vampiro Nosferatu do título traz implícita uma citação ao monstro do cinema expressionista alemão criado por Murnau (em 1922) e sua conhecida fotofobia. Tunga seria o guia que daria aos espectadores a direção a seguir para escapar desse espectro e concretizar sua viagem para a luz.
A questão da iluminação espiritual sempre assombrou Tunga. Em outro vídeo de curta duração que registra uma performance, dirigido por Shelagh Wakely com participação do baterista Robertinho de Freitas, um dos três temas abordados é a vida de uma santa, Egypsíaca e a Fênix (2003), que associa a mítica ave que renasce das próprias cinzas à mulher libertina atingida pela Graça. Após meio século vagando pelo deserto, Egypsíaca tem uma visão epifânica e abjura, então, seu passado.
Na mencionada obra, duas esculturas da série Os Heraldos são montadas ao lado de grandes placas apoiadas em sinos e caldeirões. A água, elemento purificador e transformador, tem papel fundamental na performance, pois levanta o pó dourado sob o sino, deixando escorrer um líquido cor de ouro que revela a luz. Vale lembrar que o ouro, por sua natureza perene, virou signo do incorruptível, destinado a afirmar a santidade, na tradição da pintura religiosa antiga.
Na aurora do século 21, Tunga se associa ao diretor Eryk Rocha para renovar a linguagem do cinema com dois filmes de curta duração, Quimera (2004) e Medula (2005), cada um com aproximadamente 15 minutos. Quimera foi exibido no Festival de Cannes em 2004. Para fotografar essa 'quimera' (que, na mitologia grega, é uma criatura monstruosa formada por fragmentos de vários animais), Tunga e Eryk Rocha chamaram Pedro Urano, que alterna sua câmera entre um homem fazendo a barba e gatos vadios errando pelas ruas, até a fusão definitiva dos dois seres no creme de barbear.
Medula, filme em 35 milímetros, gira em torno de um casal que se prepara para uma noite de gala (Pauline Behr e Gwenaël Allan). O vestido azul da mulher é fechado não com um zíper, mas por simulacros artificiais de dentes (outra fixação de Tunga), que, como se sabe, é a única parte visível da estrutura óssea dos seres. O epílogo acentua o humor corrosivo de Tunga, ao demolir as convenções sociais e os padrões de beleza.
Duas históricas performances foram registradas e estão na mostra. Laminadas Almas (apresentada na Millan em 2004) partiu de um trabalho com dois irmãos gêmeos nos papéis de cientistas (os artistas gêmeos Thiago e Matheus Rocha Pitta) para discutir a questão da metamorfose. Ela evoluiu mais tarde para uma performance estruturada com estudantes de biologia vestidos de aventais brancos e uma confraternização com os espectadores e os dançarinos nus da companhia de dança de Lia Rodrigues, que participou de muitos trabalhos de Tunga.
A segunda performance gravada em 2007 foi Xifópagas Capilares entre Nós, variação da intervenção apresentada pela primeira vez em 1984, no Festival da Utopia e Petrópolis. Desde então, ela foi remontada em diversas ocasiões com as gêmeas ligadas pelos cabelos sendo representadas por diferentes artistas (em Amsterdã, Londres e Nova York, entre outras capitais estrangeiras). De todos os trabalhos de Tunga, é lembrado como a síntese de sua obra, por remeter a peças como Escalpe e Les Bijoux de Madame de Sade. Corpos que se espelham num jogo simétrico sob a direção do cineasta Evandro Salles marcam um filme que começa em preto e branco, prestando tributo às sombras do cinema expressionista alemão, para alcançar um novo patamar narrativo.
O segundo dia da mostra reúne produções que esclarecem tanto as intenções de Tunga ao criar 'instaurações' e performances como reflexões de parceiros, assistentes, críticos e curadores sobre o conjunto da obra desse artista que muitos consideram, com justa razão, um dos vetores da arte contemporânea brasileira." - Antonio Gonçalves Filho
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